segunda-feira, 26 de março de 2018

Tolstoi.


“Compreendi muito bem o que dizia a respeito dos açoites e do cristianismo. Mas ficou completamente obscura para mim a palavra seu, pela qual pude deduzir que estabeleciam um vínculo a ligar-me ao chefe das cavalariças. Então, não pude compreender de modo algum em que consistiria tal vínculo. Só muito depois, quando me separaram dos demais cavalos, é que expliquei a mim mesmo o que aquilo representava. Naquela época, eu não era capaz de entender a significação do fato de ser eu propriedade de um homem. As palavras ‘meu cavalo’, referindo-se a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas como as palavras ‘minha terra’, ‘meu ar’, ‘minha água’.

No entanto elas exerceram sobre mim enorme influência. Sem cessar pensava nelas e só depois de longo contato com os seres humanos pude explicar-me a significação que, afinal, lhes é atribuída. Querem dizer o seguinte: os homens não dirigem a vida com fatos, mas com palavras. Não os preocupa tanto a possibilidade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como a de falar de objetos diferentes mediante palavras convencionais. Essas palavras, que consideram muito importantes, são, sobretudo, meu ou minha, teu ou tua. Aplicam-nas a todas as espécies de coisas e de seres, inclusive à terra, aos seus semelhantes e aos cavalos.

Além disto, convencionaram que uma pessoa só pode dizer meu a respeito de uma coisa determinada. E aquele que puder aplicar a palavra ‘meu’ a um número maior de coisas, segundo a convenção feita, considera-se a pessoa mais feliz. Não sei por que as coisas são desse modo; mas sei que são assim. Durante muito tempo procurei compreender isso, supondo que daí viria algum proveito direito; mas verifiquei que isso não era exato.

Muitas pessoas das que me chamavam seu cavalo nem mesmo me montavam; mas outras o faziam. Não eram elas as que me davam de comer, mas outros estranhos. Também não eram as pessoas que me faziam bem, mas os cocheiros, os veterinários e, em geral, pessoas desconhecidas. Posteriormente, quando ampliei o círculo de minhas observações, convenci-me de que o conceito de meu – e não só com relação a nós, cavalos – não tem qualquer outro fundamento além de um baixo instinto animal, que os homens chamam sentimento ou direito de propriedade. O homem diz ‘minha casa’ mas nunca vive nela; preocupa-se só em construí-la e mantê-la. O comerciante diz ‘minha loja’, ou ‘meus tecidos’, por exemplo, mas não faz suas roupas com os melhores tecidos que vende na loja. Há pessoas que chamam sua uma extensão de terra e nunca a viram nem passaram por ela. Há outras que dizem serem suas certas pessoas que nunca viram nesta vida e a única relação que têm com elas consiste em causar-lhes dano. Há homens que chamam de suas certas mulheres, e estas convivem com outros homens. As pessoas não procuram , em sua vida, fazer o que consideram o bem, e sim a maneira de poder dizer do maior número possível de coisas: é meu. Agora estou persuadido de que nisso reside a diferença essencial entre nós e os homens. Portanto, sem falar de outras prerrogativas nossas, só por este fato podemos dizer, com segurança, que, entre os seres vivos, nos encontramos em nível mais alto que o dos homens. A atividade dos homens, pelo menos a dos homens com os quais tenho tratado, se traduz em palavras, ao passo que a nossa se manifesta em fatos”.




Trecho de Kholstomér, de Tolstoi, pelo qual fiquei extremamente curiosa após encontrar em Victor Chklovski e sua ótima análise teórica no capítulo "A arte como procedimento"*.
A felicidade da graduação é encontrar essas maravilhas.



*Referência:






TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura: textos dos formalistas russos. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: UNESP, 2013.


terça-feira, 20 de março de 2018

"Se fôssemos responsáveis apenas pelas coisas de que temos consciência, os imbecis seriam absolvidos antecipadamente de todas as faltas. Acontece, meu caro Fleischman, que o homem é obrigado a saber. O homem é responsável por sua ignorância. A ignorância é uma falta. Por isso nada pode absolvê-lo de sua falta, e declaro que você se comporta como um malandro com as mulheres, mesmo que o negue."

KUNDERA, Milan. Risíveis amores.

Não sei se quero concordar, pois concordando tenho a esperança de que todas as pessoas tenham consciência de todo e qualquer ato - até mesmo dos atos realizados inconscientemente - e assim assumam a responsabilidade sobre eles o tempo todo, ou se prefiro discordar, pois ter responsabilidade sobre os atos inconscientes e prestar atenção em absolutamente cada gesto é uma tarefa bem difícil - para dizer o mínimo. Pensarei mais um pouco.

terça-feira, 6 de março de 2018

"Atravessamos o presente de olhos vendados, mal podemos pressentir ou adivinhar o que estamos vivendo. Só mais tarde, quando a venda é retirada e examinamos o passado, percebemos o que vivemos e compreendemos o sentido do que se passou."

KUNDERA, Milan. Risíveis amores.

Será que realmente compreendemos o sentido do que se passou, quando a venda nos é retirada? Será que para toda situação há uma explicação lógica posterior?
Talvez nem sempre.