quarta-feira, 2 de março de 2011

O Amarelo Triste


Pietro era uma criança de 6 anos de idade aparentemente comum. Brincava com as outras crianças - com um entusiasmo cada vez menor, era verdade - na escola, fazia suas lições e respeitava a mãe. Apenas uma característica destacava-se: ficava extremamente triste quando via a cor amarela e tinha pavor de girassóis. Um pavor tão grande que, quando avistava a flor, corria pra se esconder atrás do primeiro objeto que encontrasse. O motivo era desconhecido.
Os pais achavam estranha aquela reação peculiar, pois não havia nada que justificasse a tristeza do garoto ao ver a cor amarela, geralmente associada à alegria. O girassol também não se encaixava naquele pavor.
Resolveram levá-lo a um psicólogo para entender o problema e resolvê-lo. A mãe ficara responsável por acompanhar o garoto, pois o pai era um pintor ocupado, e fazia réplicas de telas famosas para vender - essa fora a justificativa dele durante as muitas discussões sobre o assunto.
Várias sessões foram realizadas, e tudo o que o menino fazia era desenhar um homem. O mesmo homem, que só tinha contornos e era completamente preenchido de preto. Não existiam feições ou cores.
Em uma das sessões iniciais, o doutor partiu para a pergunta mais óbvia:
- Senhora, existe algum vazo de girassóis em sua casa?
- Não - respondeu a mãe.
As consultas seguiram-se, até que Francesca se dera conta: no sótão da casa existia uma velha réplica que seu marido fizera da tela "Doze Girassóis em uma Jarra", de Vincent Van Gogh.
Ao contar o fato ao psicólogo na sessão seguinte, ele pediu:
- Coloque Pietro em frente a essa tela e observe sua reação, principalmente sua linguagem corporal.
- Mas ele nunca foi ao sótão, como poderia ter visto o quadro? - perguntou ela.
- Talvez ele não tenha ido enquanto a senhora estava presente. Mas não importa, apenas faça esse experimento.
Francesca, naquele mesmo dia, levou o filho ao sótão e colocou-o em frente ao quadro. Surpreendentemente, Pietro abaixou as calças e ficou de joelhos.
- O que é isso, meu filho?! - exclamou Francesca, que imediatamente arrumou o garoto e tirou-o de lá. Confusa e sem saber o que fazer com aquela reação, esperou que seu marido chegasse em casa para ficar com Pietro enquanto ela ia ao mercado.
Enquanto fazia as compras rápida e distraidamente, tentava ligar os fatos: o medo que o filho tinha de amarelo e girassóis, a tela, o homem que o garoto desenhava nas sessões, a fala do médico sobre seu filho não ir ao sótão em sua presença, a reação de Pietro ao encarar a obra e o aparente desinteresse do pai no tratamento do filho.
Largou as compras e correu para casa.
Abriu a porta às pressas e correu ao sótão. Lá estava a origem de todos os problemas: Pietro estava de frente para a tela, ajoelhado, com as calças abaixadas. Seu pai o estuprava.



Vase With Twelve Sunflowers - Van Gogh

Um comentário:

  1. Uuii.Forte,denso e bem escrito o texto.Simbologias sempre usadas pelas crianças nesses casos e que as fazem carregar esses terríveis vetígios por toda a vida. Parabéns Marina, cada dia escreves melhor!

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