quarta-feira, 29 de março de 2017

Pessoa.

A literatura, que é a arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superfluidade do animal. Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-lhe o terror. Os campos são mais verdes no dizer-se do que no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanência que a vida celular não permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver. Não há nada de real na vida que o não seja porque se descreveu bem. Os críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longamente ritmado, não quer, afinal, dizer senão que o dia está bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos seguirem na diversidade do tempo, conforme nós intensamente o houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imaginação metida no corpo, verdadeiramente sido. Não creio que a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que um decurso de interpretações, um consenso confuso de testemunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
Tenho nesse momento tantos pensamentos fundamentais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que me canso de repente, e decido não escrever mais, não pensar mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto poderia ser dito.

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego.


Certa vez eu disse que talvez a minha forma de expressão fosse o gesto. Acho que me confundi. Preciso mesmo é de palavras.
De uma forma geral, é através delas que compreendemos o mundo. E só o fazemos porque podemos, assim, nos comunicar, registrar, relembrar, elaborar teorias e esquemas de explicação. E esse poder nos dado pelas palavras nos dá a possibilidade de criar cultura e transformar o espaço que habitamos. E, até onde sabemos, essa ferramenta é só nossa.
Aí volta aquele papo sobre conhecimento. O conhecimento e a apreensão acerca da existência só é possível porque é verbalizado e descrito. O resto é balela. Sem palavra não há registro e tampouco compreensão, que dirá o que vem depois - a reverenciada ciência.
Agora acho que encontrei uma justificativa - talvez ainda não tão bem elaborada, mas já é um início, e eu queria muito um - para brigar pelas humanidades. Obrigada, Pessoa - e desculpe-me se desviei um pouco do foco.
Mas, em tempo, devo dizer que, se a palavra é essencial para a compreensão e a existência, a arte ligada a ela também o é, pois alimenta a alma e torna tudo muito mais suportável.

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