domingo, 4 de junho de 2017

"Eu o vi certamente (e não presumo
 Que a vista me enganava): levantar-se
 No ar um vaporzinho e sutil fumo
 E, do vento trazido, rodear-se;
 De aqui levado um cano ao pólo sumo
 Se via, tão delgado, que enxergar-se
 Dos olhos fàcilmente não podia;
 Da matéria das nuvens parecia.

 Ia-se pouco e pouco acrescentando
 E mais que um largo mastro se engrossava;
 Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
 Os golpes grandes de água em si chupava;
 Estava-se co'as ondas ondeando;
 Em cima dêle uma nuvem se espessava,
 Fazendo-se maior, mais carregada,
 Co'o cargo grande d'água em si tomada.

 Qual roxa sanguessuga se veria
 Nos beiços da alimária (que, imprudente,
 Bebendo a recolheu na fonte fria)
 Fartar co'o sangue alheio a sêde ardente;
 Chupando, mais e mais se engrossa e cria,
 Ali se enche e se alarga grandemente:
 Tal a grande coluna, enchendo, aumenta
 A si e a nuvem negra que sustenta.

 Mas, depois de tudo se fartou,
 O pé que tem no mar a si recolhe
 E pelo céu, chovendo, enfim voou,
 Por que co'a água a jacente água molhe;
 Às ondas torna as ondas que tomou,
 Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
 Vejam agora os sábios na escritura
 Que segredos são êstes de natura.

 Se os antigos filósofos, que andaram
 Tantas terras, por ver segredos delas,
 As maravilhas que eu passei, passaram,
 A tão diversos ventos dando as velas,
 Que grandes escrituras que deixaram!
 Que influição de signos e de estrêlas,
 Que estranhezas, que grandes qualidades!
 E tudo sem mentir, puras verdades."

Discurso de Vasco da Gama ao se deparar com o fenômeno "tromba marítima" em alto mar, antes de aportar pela segunda vez em sua viagem rumo às Índias, n'Os Lusíadas. Nessas horas - em que demonstra seu próprio embasbacamento com o universo e seus mistérios - eu me derreto um pouco mais por Camões. Continuemos a navegação.

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